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Uma novidade chamou a atenção nas bancas do Rio de Janeiro há 120 anos, na quarta-feira, 11 de outubro de 1905.
Em meio aos periódicos que informavam e entretinham a sociedade, uma publicação ilustrada e cheia de desenhos apelava ao olhar infantil: era a revistinha O Tico-Tico, considerada a primeira revista de histórias em quadrinhos do país.
“Era uma revista criada para estimular as crianças à leitura, uma ideia moderna naquele momento”, diz o cartunista e jornalista José Alberto Lovetro, o JAL, presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil.
“Foi uma das pioneiras do mundo como revistas de quadrinhos, revista para crianças nesse formato. E realmente conseguiu entrar nas escolas, estimular as crianças à leitura”, analisa. “Por isso temos uma tradição aqui no Brasil de revistas em quadrinhos, abrindo caminho para desenhistas como o Mauricio de Sousa e o Ziraldo, que conseguiram manter esse público.”
Com logotipo concebido pelo já consagrado desenhista e ilustrador ítalo-brasileiro Angelo Agostini (1843-1910), O Tico-Tico ganhou o coração das crianças com historinhas, personagens marcantes e passatempos.
Acabou abrindo espaço para os quadrinhos no país ao mesmo tempo que criou uma ideia de mercado literário voltado para a infância.
“O cabeçalho criado por Agostini passa uma mensagem de pureza e inocência. As crianças, retratadas como espécies de querubins, se divertem por entre as letras que formam o título da revista”, comenta a jornalista Sonia Bibe Luyten, criadora da primeira gibiteca do país e autora de O Que É História em Quadrinhos (Brasiliense, 1987), entre outros livros.
Um jornalzinho para crianças
Publicação circulou até 1977 e apresentou Mickey e Popeye ao público nacional
Reprodução/Acervo Pessoal de Richardson Santos de Freitas
Conforme a pedagoga Cíntia Borges de Almeida, professora na Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), o corpo editorial da revista a anunciava com a missão de “divertir, estimular e ser útil às petizadas do Brasil”.
O Tico-Tico nasceu intitulando-se o “jornal das crianças”. “[Foi a] denominação dada por seus fundadores”, declara Almeida.
No editorial de lançamento da revista, foi publicado que o jornalzinho vinha “preencher uma lacuna” por ser “um jornal que se destina exclusivamente ao uso, à leitura, ao prazer, à distração das crianças”.
“Não queremos a atenção nem os aplausos da gente grande: os pequeninos, os inocentes, os simples formarão o nosso público”, anunciou a revista. “É para eles que escrevemos, e se conseguirmos agradar-lhes, teremos obtido o único triunfo que ambicionamos.”
“O Tico-Tico não foi apenas uma revista de entretenimento infantil, mas um instrumento que demarca a expansão da imprensa, a modernização dos meios de comunicação e é um símbolo para se analisar as estratégias editoriais para se divulgar ideias, pensamentos e projetos de sociedade”, contextualiza a pedagoga.
“Os livros possuíam um lugar privilegiado e alcançaram a preferência nos círculos letrados. Diante desta predileção, o mercado editorial do jornal e das revistas cooptaram a atenção de diversas camadas sociais através de suas narrativas plurais, mais sintetizadas, possibilitando leitura de modo extensivo, atingindo públicos leitores, mas também sendo instrumento de leituras públicas, o que ampliou o seu alcance de públicos de diferentes classes, alfabetizados ou não.”
Apesar dos elevados índices de analfabetismo, enquanto ocorria a popularização da palavra impressa e da cultura letrada, diferentes veículos impressos cumpriram papel alfabetizador, observa a professora.
“Isso se deu com O Tico-Tico. Não se trata de processo de alfabetização que substitua o lugar da escola, mas, ele também cumpriu um papel, ainda que informal, no processo educacional da sociedade”, considera Almeida.
Coautor do livro O Tico-Tico — 100 Anos (Opera Graphica, 2006) e vice-coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos da Universidade de São Paulo (USP), o jornalista Roberto Elísio dos Santos ressalta que a revista “abriu o mercado para outras publicações do gênero” no país.
Principalmente, com foco em “crianças de uma classe alta”, que “iam para a escola, sabiam ler ou estavam em fase de alfabetização”.
“Foi importante para a formação de leitores”, pontua ele. “E foi interessante porque era uma publicação que levava à produção de outras, algo não comum naquela época. Por exemplo: aos fins de ano, tinha um almanaque com capa dura, lombada quadrada e mais páginas, que era o presente de Natal das crianças.”
Inspiração francesa
A ideia da revista foi do jornalista Luís Bartolomeu de Souza e Silva (1864-1932), que se inspirou em publicações semelhantes que circulavam na França.
“O Tico-Tico era muito similar às revistas infantis europeias do começo do século. Coloridas e moralistas. Muitas de suas histórias visavam à educação das crianças e à construção de sólidas convicções morais”, enfatiza Maria Cristina Merlo, mestre em história em quadrinhos pela USP com o trabalho O Tico-Tico — Um Século de Histórias em Quadrinhos no Brasil.
“Tenho uma edição de 1928 e eles tinham uma coisa diferenciada: colocavam quadrinhos na capa”, atenta Lovetro, da Associação dos Cartunistas do Brasil.
Merlo lembra, contudo, que não era só HQ. “Especificamente, é preciso salientar que O Tico-Tico não era exatamente uma revista em quadrinhos, ou um gibi, como depois elas vieram a se denominar no país”, ressalva. “Era, muito mais, uma revista infantil.”
“Mas ela começou a publicar quadrinhos desde seus primeiros anos de vida e, pouco a pouco, eles foram se tornando cada vez mais importantes para os leitores. Os quadrinhos foram, talvez, o principal motivo para a permanente popularidade de O Tico-Tico entre as crianças brasileiras, geração após geração”, comenta Merlo.
A revista tinha por trás a estrutura profissional da editora que publicava O Malho, revista ilustrada que enfatizava a sátira política e o humor e que surgiu no ano de 1902, no Rio — a publicação era dirigida por Silva, o mesmo idealizador da infantil.
“[O Tico-Tico] produziu um grande impacto no mercado editorial porque contava com toda a estrutura de profissionais, maquinário e distribuição do grupo O Malho”, salienta o cartunista e biblioteconomista Richardson Santos de Freitas, o Ric, que estudou histórias em quadrinhos em pesquisa realizada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Isso permitiu que os 10 mil exemplares de sua primeira edição esgotassem rapidamente, necessitando de uma segunda edição. A revista foi um grande sucesso, sem muita concorrência por um longo período, chegando a alcançar a tiragem de 100 mil exemplares por semana”, completa ele.
Plágios e criações
Entre os personagens de O Tico-Tico estavam criações nacionais, republicações autorizadas de quadrinhos que faziam sucesso no exterior e até mesmo cópias não-autorizadas.
É o caso de Chiquinho, o personagem que chegou a ser o mais popular da revista.
Nos anos 1950 soube-se que se tratava de um plágio: sem autorização, os brasileiros tinham copiado Buster Brown, do norte-americano Richard Felton Outcault (1863-1928).
Em defesa dos artistas da publicação nacional, vale ressaltar que Chiquinho ganhou contornos de menino brasileiro. “Com o decorrer do tempo, o Chiquinho foi devidamente adaptado à realidade cultural brasileira e tornou-se o personagem-símbolo de O Tico-Tico”, pontua Merlo.
Era um garoto de classe média que, em suas histórias, estava ambientado no dia a dia de uma cidade típica da época. Com o passar do tempo, ganhou coadjuvantes — Benjamin, um menino negro, e Jagunço, um cão, eram os mais recorrentes.
“O personagem mais importante da revista foi sem dúvida Chiquinho, que todos pensavam ser um personagem genuinamente nacional. Não era”, diz o biblioteconomista Waldomiro Vergueiro, professor na USP e coautor do livro O Tico-Tico — 100 Anos (Opera Graphica, 2006).
Vergueiro conta que “o personagem durou pouco nos Estados Unidos, mas fez muito sucesso por aqui”. “Quando parou de ser publicado lá, os editores brasileiros encarregaram autores nacionais a continuar com as histórias”, relata.
“Os brasileiros criaram para o menino um companheiro de brinquedos, um garoto negro que era agregado da família. Isso era muito comum na época. Hoje, reconhecemos nas histórias um tratamento extremamente racista, mas na época não era visto dessa forma”, pondera o especialista.
Esse trio de personagens ficou tão famoso que acabou sendo mencionado até em canção da MPB. São citados na música Lampião de Gás, criação de Zica Bérgami (1913-2011) imortalizada na voz de Inezita Barroso (1925-2015).
Nem tudo era pirataria. O Tico-Tico tinha contrato com os chamados syndicates americanos, as agências distribuidoras que se encarregavam de vender tiras de autores famosos nos Estados Unidos para todo o mundo.
Foi assim, portanto, que o roedor mais famoso do mundo estreou no Brasil pelas páginas da revista, nos anos 1930.
No início, Mickey era chamado simplesmente de Ratinho Curioso. Mais tarde, se transformou em Camondongo Mickey, o Ratinho Curioso — com a grafia antiga de “camundongo”.
Freitas situa no tempo essa história. O ratinho apareceu pela primeira vez na edição de número 1277, que saiu em 26 de março de 1930 — apenas dois anos depois de ter sido criado por Walt Disney (1901-1966), portanto. A série se chamava A História do Ratinho Curioso.
Quatro anos mais tarde, a seção foi rebatizada como As Aventuras do Camondongo Mickey. “A revista fazia questão de dizer que era uma exclusividade no Brasil”, diz Freitas.
Outro personagem famoso a debutar no Brasil por meio de O Tico-Tico foi o marinheiro Popeye, rebatizado de Brocoió. Krazy Kat, por sua vez, virou simplesmente Gato Maluco. O Gato Félix foi outra criação estrangeira que chegou ao público do país pelas páginas da revistinha.
Quadrinistas brasileiros também fizeram sucesso com suas criações nas páginas da revista. É o caso de J. Carlos, como assinava José Carlos de Brito e Cunha (1884-1950), que eternizou na publicação as histórias de Lamparina.
Nessas historinhas, uma criança negra e careca aprontava todas as traquinagens em uma cidade do interior — atormentado os adultos.
Luyten lembra que J. Carlos carregava as influências do estilo art déco em suas ilustrações. “A essência de sua obra é toda ela envolvida por esse movimento”, diz.
“Lamparina, é o protótipo de uma enfant terrible [“criança terrível”, na tradução literal do francês]”, analisa.
Muitos pensam ser do sexo masculino, mas é, na realidade, uma menina impúbere com cerca de dez anos, que, vinda de uma ilha distante, integra-se oficialmente ao elenco de personagens de O Tico-Tico em 25 de abril de 1928, lembra a autora do livro O Que É História em Quadrinhos.
“O fato de ser confundida com um menino deve-se à reduzida tanga amarela estampada com bolas pretas que lhe deixa nu o busto ainda sem características femininas. O cabelo curto encarapinhado, o corpinho magro e desengonçado e seu temperamento irrequieto dão-lhe, no mínimo, um aspecto andrógino”, contextualiza Luyten.
Freitas conta que J. Carlos chegou a desenhar o Mickey em peças publicitárias publicadas na revista O Tico-Tico.
E quando Disney visitou o Brasil, em 1941, “conheceu os desenhos do artista”. “Fez um convite de trabalho a J. Carlos, que recusou”, afirma.
Reco-Reco, Bolão e Azeitona, trio de amigos trapalhões criados pelo caricaturista Luiz Sá (1907-1979) também conquistaram logo os leitores da publicação.
Pioneira na pesquisa de quadrinhos no Brasil, Luyten lembra que o êxito da O Tico-Tico tem muito a ver com a maneira como a publicação se aproveitou do talento dos maiores das artes gráficas do país naquele tempo.
“Na minha opinião, o grande mérito da revista foi ter dois nomes gigantes das histórias em quadrinhos brasileiras: Angelo Agostini e J. Carlos”, diz.
Ela afirma que ainda há um “desconhecimento generalizado” dos primeiros personagens feitos por eles, “em parte, pela dificuldade de encontrar e mesmo consultar” antigas coleções.
Pais e filhos
Além do forte apelo à criançada, especialistas acreditam que parte do sucesso de O Tico-Tico precisa ser creditado à maneira como a revista conseguia dialogar também com os adultos — no caso, os pais que compravam a publicação para seus filhos.
“Estamos falando de uma revista com ampla circulação e com uma longevidade de mais de 50 anos, no Brasil. Ela interferiu na formação educacional e cultural de diferentes gerações populacionais do Brasil”, ressalta Almeida, destacando que a revista serviu como um espaço de incentivo à leitura, mas não só isso.
“É preciso problematizar o conteúdo dos seus textos. Estamos falando de uma revista colorida, de muitas páginas, muitas imagens, muitas ilustrações, com propagandas, com atividades didáticas, charges e caricaturas”, completa.
A pesquisadora lembra que o modelo — um jornal para crianças comprado por adultos — precisava mirar nos pequenos, mas cativar os pais.
“Como os pais avaliariam o conteúdo da revista se não a lessem?”, questiona ela.
Assim, houve um esforço da publicação em mostrar aos adultos que a revistinha conferia aos pequenos uma “formação considerada adequada”, diz Almeida.
“Essas revistas eram a televisão da época. Era preciso alguma coisa para as crianças e a leitura é o melhor brinquedo”, diz Lovetro.
A revista circulou de forma constante e periódica até 1962. A partir de então se tornou um título de publicações eventuais, sobretudo em edições de cunho paradidático — conteúdos de geografia, de história ou de literatura, direcionados ao uso em sala de aula, por exemplo.
“Havia edições bem educativas, tipo cartilhas para a escola”, comenta Lovetro.
Desde o início, a revista teve uma visão educativa e formativa. Era dirigida aos pais, que compravam as edições para os filhos e os incentivavam a ler, diz Vergueiro.
“Grande parte da publicação era composta por matérias com viés educacional, com contos, fábulas, conselhos, histórias moralizantes. As crianças eram atraídas pelas figuras, jogos, brincadeiras e histórias em quadrinhos”, completa.
Esse apelo junto aos pais influenciava nos anúncios, é claro. “Tinha propaganda de marmelada. Mas também de cigarro e remédios, algo que pode ser um espanto hoje”, afirma Santos.
Vergueiro afirma ainda que a revista soube explorar variações, sempre apresentando “novidades e personagens interessantes”.
“Manteve-se em bancas durante décadas, encantando gerações”, diz. “Tentou se adaptar, mas aos poucos seu modelo de publicações variadas foi ficando datado e ela foi perdendo espaço para outras publicações e mídias.”
A última O Tico-Tico, de número 2097, foi publicada em 1977.
Fonte: G1 Entretenimento